domingo, 27 de março de 2011

Quando me tornei invisivel

Já não sei em que data estamos.
Lá em casa não há calendários e na minha memória as datas estão todas misturadas.
Recordo-me daquelhas folhinhas grandes, uns primores, ilustradas com imagens dos santos que colocávamos no lado da penteadeira.
Já não há nada disso.
Todas as coisas antigas foram desaparecendo.
E sem que ninguém se desse conta, eu me fui apagando também...

Primeiro trocaram-me de quarto, pois a família cresceu.
Depois passaram-me para outro, menor ainda, com a companhia das minhas bisnetas.
Agora ocupo um desvão, que está no pátio de trás.
Prometeram trocar o vidro quebrado da janela.
Mas, esqueceram-se.
E todas as noites por ali circula um ar gelado que aumenta as minhas dores reumáticas.
Mas tudo bem...

Desde há muito tempo que tinha a intenção de escrever, porém passava semanas a procurar um lápis.
E quando o encontrava, eu mesma voltava a esquecer onde o tinha posto.
Na minha idade as coisas se perdem facilmente, claro, não é uma enfermidade delas, das coisas, porque estou segura de tê-las, porém sempre desaparecem.
Noutra tarde dei-me conta que a minha voz também tinha "desaparecido".
Quando eu falo com os meus netos, ou com os meus filhos,não me respondem.
Todos falam sem me olhar, como se eu não estivesse com eles.
Às vezes intervenho na conversação, segura de que o que lhes vou dizer não ocorrera a nenhum deles, e de que lhes vai ser de grande utilidade.
Porém não me ouvem, não me olham, não me respondem.

Então, cheia de tristeza, retiro-me para o meu quarto e vou beber a minha chávena de café.
E faço assim, de propósito, para que compreendam que estou aborrecida, para que se dêem conta que me entristecem e venham buscar-me e me peçam perdão...
Porém, ninguém vem...

Quando o meu genro ficou doente, pensei ter a oportunidade de ser-lhe útil.
Levei-lhe um chá especial que eu mesma preparei.
Coloquei-o na mesinha e sentei-me a esperar que o tomasse.
Só que ele estava a ver televisão e nem um só movimento me indicou que se dera conta da minha presença.
O chá, pouco a pouco, foi esfriando... e junto com ele, o meu coração.

Então, noutro dia, disse-lhes que quando eu morresse todos se iriam arrepender.
O meu neto mais pequeno então disse:
"Ainda estás viva vóvó ?".
Eles acharam tanta graça, que não pararam de rir.
Durante três dias chorei no meu quarto, até que numa manhã entrou um dos rapazes para retirar umas rodas velhas e nem o bom dia me deu.
Foi então que me convenci de que sou invisivel...
Parei no meio da sala para ver, se me tornando um estorvo, me olhavam.
Porém a minha filha seguiu a varrer sem me tocar, os meninos correram em minha volta, de um lado para o outro, sem tropeçar em mim.

Um dia, em grande agitação, os meninos vieram dizer-me que no dia seguinte iríamos todos passar um dia no campo.
Fiquei muito contente.
Fazia tanto tempo que não saía e mais ainda ia ao campo.
No sábado fui a primeira a levantar-me.
Quis arrumar as coisas com calma.
Nós, os velhos, tardamos muito em fazer qualquer coisa, por isso adiantei-me para não os atrazar.
Rápido, entrávam e saíam da casa correndo e levavam as bolsas e brinquedos para o carro.
Eu já estava pronta e muito alegre.
Permaneci no saguão a esperá-los. Quando me dei conta, eles já tinham partido e o carro desapareceu, envolto em grande algazarra.

Compreendi que eu não estava convidada, talvez, porque não coubesse no carro...
Ou porque os neus passos tão lentos impediriam que todos os demais caminhassem a seu gosto pelo bosque.
Senti dolorosamente como o meu coração se encolheu e a minha face ficou tremendo como a gente tem que engolir a vontade de chorar.

Eu entendo-os.
Eles vivem o mumdo deles.
Riem, gritam, sonham, choram, abraçam-se e beijam-se.
E eu, já nem sinto sequer o gosto de um beijo.


Antes beijava os pequeninos.
Era um prazer enorme tê-los nos meus braços, como se fossem meus.
Sentia a sua pele tenrinha e a sua respiração doce bem perto de mim.
A vida nova produzia-me um alento e até me dave vontade de cantar canções que nunca acreditara me lembrar.
Porém, um dia a minha neta Laura, que acabava de ter um bébé, disse-me que não era bom que os velhos beijassem oa bébés, por questões de saúde...
Desde então já não me aproximo deles.
Não quero passar-lhes algo de mal por minhas imprudências.
Tenho tanto mêdo de contagiá-los.

Eu os bendigo a todos e os perdôo, porque...
"QUE CULPA EU TENHO DE ME TER TORNADO INVISIVEL ?".

Quando já não formos imprescindíveis.
Quando já não formos úteis.
Quando já formos um estorvo.
Ficaremos invisiveis.

A menos que a morte chegue primeiro.
Antes isso...

1 comentário:

  1. Pelo menos aqui não será invisível!

    Não se rejeite à vida, e desfrute do alento que ainda lhe resta.
    Faça os possíveis por não depender de terceiros, enquanto pode.

    Vá passear, conviver com amigos, etc...

    Se se resignar ao abandono, abandonada será, ainda que não seja por maldade, mas apenas porque a vida hoje corre demasiado depressa.

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