quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Eu também não paguei quando e como eles queriam


Eis senão quando, em certa altura da minha vida, vi-me sem dinheiro.
Sem emprego, sem rendimento.
Tinha uma dívida ao banco, da compra de uma carrinha, que andava a pagar.
Mas, agora, subitamente, não tinha dinheiro.
Sobravam-me alguns trocos que mal davam para sobreviver num curto espaço de tempo.
E a dívida ao banco ?
Como se pagam dívidas sem dinheiro ?
Que fazer ?

Tenho de ganhar dinheiro, pensei.
Só ganhando dinheiro conseguiria sobreviver e pagar a dívida.
Mas como ?
Era, e sou, informático.
Mas, nessa altura, já com 44 anos de idade como seria possível arranjar emprego nesta área tão exigente ?
Não era possível.
E não foi possível a curto prazo.

Mas, tinha que ganhar dinheiro, JÁ.
Para sobreviver.
Para pagar a dívida.

Com os trocos que me restavam fui comprar bolos e tentar vendê-los nos cafés das redondezas.
E lá fui vendendo, penosamente.
E a dívida ?
Fui ao banco.

Fazendo umas contas verifiquei que poderia pagar uma prestação mais suave, sobreviver e, ao mesmo tempo que, desta forma, poderia continuar a comprar bolos e vendê-los para gerar rendimento.
Se tivesse de pagar a prestação acordada inicialmente, inviabilizaria todo o processo.
Propus uma dilatação do prazo de pagamento.
A prestação seria suavizada.
O banco recebia com mais juros.
Eu daria continuidade ao meu projecto.
Todos ficaríamos a ganhar.

Mas não.
O banco não aceitou.
Tinha que pagar.
Mas não tenho dinheiro, disse eu.
Mas não.
Tem de pagar.
NÃO PAGO.
E não paguei.

A partir daí meti mãos à obra.
Como o banco recusou receber o possível.
E impossíveis não são a minha especialidade.
Fiquei com maior capacidade de fazer crescer o meu negócio de ocasião.

E ele foi crescendo, crescendo.
O banco ia, periódicamente, escrevendo cartas a que eu não respondia.
E o negócio a crescer.
O banco informou-me que iria enviar o processo para contencioso.
E o negócio a crescer.
O contencioso, passados meses, ameaçou-me que iria enviar o processo para tribunal.
E o negócio a crescer.
E o tempo passava, e passava.
Entretanto eu ia sempre respondendo a anúncios de emprego na minha área profissional.
E finalmente consegui o tão desejado emprego.
O tribunal, depois de mais uns tantos meses, comunicou-me que tinha dado entrada o processo de dívida.
Pois sim, pensei eu.
Agora, já com negócios rentáveis.
Agora, com um emprego bem remunerado.
Agora, cá em casa, já não faltava nada.
Agora, cá em casa, até já sobrava.
Agora, sim, já estava em condições de poder pagar.
E PAGUEI.

Vem isto a propósito de realçar que cabe aos credores ajudarem a criar condições aos devedores para que estes possam pagar.
Caso contrário não recebem.
Quem não tem dinheiro não pode pagar.
Ponto.

Eu paguei porque fui ensinado a cumprir os meus compromissos.
Eu paguei porque já não punha em causa a minha sobrevivência e a dos meus.
Paguei mais mas já não me fazia falta.
E reconstrui a minha vida.
Foi das melhores decisões da minha vida.
Ainda hoje estou agradecido ao banco por não ter aceite a minha proposta de pagamentos mais suaves.
Teria sido mais difícil.
Curiosamente.

Um contrato de empréstimo é um contrato de risco.
Risco para o credor porque pode não receber.
Risco para o devedor porque, por razões muitas vezes alheias, pode deixar de ter condições para pagar.
Cabe aos dois, credor e devedor, agindo de boa-fé, criar condições para que o contrato se cumpra.
Será que os credores do País estão a fazer isso ?
Ou estão a agir de má-fé e prepotentemente ?

Pagar a dívida, SIM.
Morrer à fome para a pagar, NÃO.

Eu também não paguei quando e como eles queriam.

domingo, 27 de março de 2011

Quando me tornei invisivel

Já não sei em que data estamos.
Lá em casa não há calendários e na minha memória as datas estão todas misturadas.
Recordo-me daquelhas folhinhas grandes, uns primores, ilustradas com imagens dos santos que colocávamos no lado da penteadeira.
Já não há nada disso.
Todas as coisas antigas foram desaparecendo.
E sem que ninguém se desse conta, eu me fui apagando também...

Primeiro trocaram-me de quarto, pois a família cresceu.
Depois passaram-me para outro, menor ainda, com a companhia das minhas bisnetas.
Agora ocupo um desvão, que está no pátio de trás.
Prometeram trocar o vidro quebrado da janela.
Mas, esqueceram-se.
E todas as noites por ali circula um ar gelado que aumenta as minhas dores reumáticas.
Mas tudo bem...

Desde há muito tempo que tinha a intenção de escrever, porém passava semanas a procurar um lápis.
E quando o encontrava, eu mesma voltava a esquecer onde o tinha posto.
Na minha idade as coisas se perdem facilmente, claro, não é uma enfermidade delas, das coisas, porque estou segura de tê-las, porém sempre desaparecem.
Noutra tarde dei-me conta que a minha voz também tinha "desaparecido".
Quando eu falo com os meus netos, ou com os meus filhos,não me respondem.
Todos falam sem me olhar, como se eu não estivesse com eles.
Às vezes intervenho na conversação, segura de que o que lhes vou dizer não ocorrera a nenhum deles, e de que lhes vai ser de grande utilidade.
Porém não me ouvem, não me olham, não me respondem.

Então, cheia de tristeza, retiro-me para o meu quarto e vou beber a minha chávena de café.
E faço assim, de propósito, para que compreendam que estou aborrecida, para que se dêem conta que me entristecem e venham buscar-me e me peçam perdão...
Porém, ninguém vem...

Quando o meu genro ficou doente, pensei ter a oportunidade de ser-lhe útil.
Levei-lhe um chá especial que eu mesma preparei.
Coloquei-o na mesinha e sentei-me a esperar que o tomasse.
Só que ele estava a ver televisão e nem um só movimento me indicou que se dera conta da minha presença.
O chá, pouco a pouco, foi esfriando... e junto com ele, o meu coração.

Então, noutro dia, disse-lhes que quando eu morresse todos se iriam arrepender.
O meu neto mais pequeno então disse:
"Ainda estás viva vóvó ?".
Eles acharam tanta graça, que não pararam de rir.
Durante três dias chorei no meu quarto, até que numa manhã entrou um dos rapazes para retirar umas rodas velhas e nem o bom dia me deu.
Foi então que me convenci de que sou invisivel...
Parei no meio da sala para ver, se me tornando um estorvo, me olhavam.
Porém a minha filha seguiu a varrer sem me tocar, os meninos correram em minha volta, de um lado para o outro, sem tropeçar em mim.

Um dia, em grande agitação, os meninos vieram dizer-me que no dia seguinte iríamos todos passar um dia no campo.
Fiquei muito contente.
Fazia tanto tempo que não saía e mais ainda ia ao campo.
No sábado fui a primeira a levantar-me.
Quis arrumar as coisas com calma.
Nós, os velhos, tardamos muito em fazer qualquer coisa, por isso adiantei-me para não os atrazar.
Rápido, entrávam e saíam da casa correndo e levavam as bolsas e brinquedos para o carro.
Eu já estava pronta e muito alegre.
Permaneci no saguão a esperá-los. Quando me dei conta, eles já tinham partido e o carro desapareceu, envolto em grande algazarra.

Compreendi que eu não estava convidada, talvez, porque não coubesse no carro...
Ou porque os neus passos tão lentos impediriam que todos os demais caminhassem a seu gosto pelo bosque.
Senti dolorosamente como o meu coração se encolheu e a minha face ficou tremendo como a gente tem que engolir a vontade de chorar.

Eu entendo-os.
Eles vivem o mumdo deles.
Riem, gritam, sonham, choram, abraçam-se e beijam-se.
E eu, já nem sinto sequer o gosto de um beijo.


Antes beijava os pequeninos.
Era um prazer enorme tê-los nos meus braços, como se fossem meus.
Sentia a sua pele tenrinha e a sua respiração doce bem perto de mim.
A vida nova produzia-me um alento e até me dave vontade de cantar canções que nunca acreditara me lembrar.
Porém, um dia a minha neta Laura, que acabava de ter um bébé, disse-me que não era bom que os velhos beijassem oa bébés, por questões de saúde...
Desde então já não me aproximo deles.
Não quero passar-lhes algo de mal por minhas imprudências.
Tenho tanto mêdo de contagiá-los.

Eu os bendigo a todos e os perdôo, porque...
"QUE CULPA EU TENHO DE ME TER TORNADO INVISIVEL ?".

Quando já não formos imprescindíveis.
Quando já não formos úteis.
Quando já formos um estorvo.
Ficaremos invisiveis.

A menos que a morte chegue primeiro.
Antes isso...

sábado, 12 de março de 2011

Geração à Rasca ou Geração mal habituada ?


A geração dos meus pais não foi uma geração à rasca.
Foi uma geração com capacidade para se desenrascar.
Numa terriola do Minho as condições de vida não eram as melhores.
Mas o meu pai António não ficou de braços cruzados à espera do Estado ou de quem quer que fosse para se desenrascar.
Veio para Lisboa, aos 14 anos, onde um seu irmão, um pouco mais velho, o Artur, já se encontrava.
Mais tarde veio o Joaquim, o irmão mais novo.
Apenas sabendo tratar da terra e do pastoreio, perdidos na grande e desconhecida Lisboa, lançaram-se à vida.
Porque recusaram ser uma geração à rasca fizeram uma coisa muito simples.
Foram trabalhar.

Não havia condições para fazerem o que sabiam e gostavam.
Não ficaram à espera.
Foram taberneiros.
Foram carvoeiros.
Fizeram milhares de bolas de carvão e serviram milhares de copos de vinho ao balcaão.
Foram simples empregados de tasca.
Mas pouparam.
E quando surgiu a oportunidade estabeleceram-se como comerciantes no ramo.
Cada um à sua maneira foram-se desenrascando.
Porque sempre assumiram as suas vidas pelas suas próprias mãos.
Porque sempre acreditaram neles próprios.

E nós, eu e os meus primos, nunca passámos por necessidades básicas.
Nós, eu e os meus primos, sempre tivémos a possibilidade de acesso ao ensino e à formação como ferramentas para o futuro.
Uns aproveitaram melhor, outros nem tanto, mas todos tiveram as condições que necessitaram.
E é este o exemplo de vida que, ainda hoje, com 60 anos, me norteia e me conduz.

Salvaguardadas as diferenças dos tempos mantenho este espírito.
Não preciso das ajudas do Estado.
Porque o meu pai e tios também não precisaram e desenrascaram-se.
Não preciso das ajudas da família que também têm as suas próprias vidas.
Não preciso das ajudas dos vizinhos e amigos.
Porque o meu pai e tios também não precisaram e desenrascaram-se.

Preciso de mim.
Só de mim.
E, por isso, não sou, nunca fui, de qualquer geração à rasca.
Porque me desenrasco.
Porque sempre me desenrasquei.


O mal desta auto-intitulada geração à rasca é a incapacidade que revelam.
Habituados, mal habituados, a terem tudo de mão beijada.
Habituados, mal habituados, a não precisarem de lutar por nada porque tudo lhes foi sendo oferecido.
Habituados, mal habituados, a pensarem que lhes bastaria um canudo de um qualquer curso dito superior para terem garantida a eterna e fácil prosperidade.
Sentem-se desiludidos.

E a culpa desta desilusão é dos "papás" que os convenceram que a vida é um mar de rosas.
Mas não é
.
É altura de aprenderem a ser humildes.
É altura de fazerem opções.
Podem ser "encanudados" de qualquer curso mas não encontram emprego "digno".
Podem ser "encanudados" de qualquer curso mas não conseguem ganhar o dinheiro que possa sustentar, de imediato, a vida que os acostumaram a pensar ser facilmente conseguida.
Experimentem dar tempo ao tempo, e entretanto, deitem a mão a qualquer coisa.
Mexam-se.
Trabalhem
.
Ganhem dinheiro.

Na loja do Shopping.
Porque não ?
Aaaahhh porque é Doutor...
Doutor em loja de Shopping não dá status social.
Pois não.
Mas dá algum dinheiro.
E logo chegará o tempo em que irão encontrar o tal e ambicionado emprego "digno".
O tal que dá status.

O meu pai e tios fizeram bolas de carvão e venderam copos de vinho.
Eu, que sou Informático, System Engineer, em alturas de aperto, vendi bolos, calças de ganga, trabalhei em cafés, etc.
E garanto-vos que sou hoje muito melhor e mais reconhecido socialmente do que se sempre tivesse tido a papinha toda feita.

Geração à rasca ?
Vão trabalhar que isso passa
.

À rasca, mesmo à rasca, também já tenho estado.
Mas vou à casa de banho e passa-me.